O que é a verdadeira inovação?

Como que a apropriação deste conceito pelos negócios limita nossa capacidade de inovar.

Melissa Setubal
consciência criativa

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O mundo dos negócios, das start ups, das organizações tem uma mania de começar a usar alguns conceitos e terminologias extremamente úteis e amplos e usá-los até o ponto deles virarem uma coisa amorfa, irreconhecível e cringe. E INOVAÇÃO sem dúvidas é uma vítima disso.

Há algumas décadas, venho pesquisando inovação pela perspectiva do funcionamento da natureza como um todo e do comportamento humano e, tendo frequentado a fundo o universo corporativo, posso afirmar categoricamente: estamos encolhendo brutalmente o real significado de inovação. A ponto de nem ter noção do seu significado verdadeiro e contemporâneo, muito necessário inclusive para nossa própria sobrevivência como espécie.

Eu estou em pleno processo de inovação do meu próprio entendimento e da minha própria capacidade de inovação, que tem conexão com meu percurso de autoconhecimento. E são três os principais motivos:

O primeiro vem de um recente salto de desenvolvimento que aconteceu comigo, que tem a ver com minha percepção sobre meu senso de responsabilidade, de cuidado, e de limites. Mas não vou falar sobre isso hoje, fica pra uma próxima, já que ainda sigo em processo de elaboração interno.

O segundo vem dos ensinamentos do professor Thiago Gringon, criador e coordenador da pós-graduação em Criatividade, Experiências & Comunidades (antigo Criatividade & Ambiente Complexo), com quem tenho o privilégio de conviver como chefe, colega de trabalho, mentor e amigo. Como professora do mesmo curso, tenho me convidado a aprender com us colegas docentes e com us estudantes, porque este curso reúne algumas das mentes mais brilhantes e dos corações mais amorosos que já tive contato.

Com esse professor, aprendi que inovação faz parte da criatividade, e não o contrário, como eu costumava pensar. Para mim, inovação era o destino final. Mas segundo a perspectiva dele, inovação nem é destino, muito menos final, inclusive porque nem é um processo linear. Para Gringon, o percurso de criatividade contém a imaginação, a criação e a inovação, que são etapas que se retroalimentam via a inspiração.

O terceiro vem de um texto brilhante da cientista estadunidense Ayesha Khan que discute sobre o que limita nossa capacidade criativa e de inovação. Ela diz (em tradução livre):

“Somos ensinades a ver o mundo por um viés competitivo, combativo, agressivo, amedrontador, quando em realidade, nossa sobrevivência depende de nós colaborarmos, cooperarmos e darmos suporte unes aus outres. Nós somos socializades a pensar sobre nós mesmes como “indivíduos” num vácuo, ao invés de parte de um coletivo, intrinsecamente conectades e amarrades unes nus outres. Falaram para nós que autossuficiência, independência e sucesso são marcadores de uma “pessoa boa”, o que também significa que interdependência, confiança nas demais pessoas e falta de motivação para ser bem sucedide são enquadrados como sinais de uma “pessoa ruim”. Participar desses sistemas pode inicialmente nos levar a internalizar essas mensagens e assumir as piores coisas uns dus outres. Nós somos incentivades a nos culpar, a nós mesmes e a outras pessoas, por nossa inabilidade de prosperar nesses sistemas opressivos, brutais, baseados em classes que não foram construídos para nenhum de nós. É tempo da gente repensar toda nossa premissa que esses sistemas estão baseados.”

É justamente o que tenho incentivado em sala de aula, o que tenho trocado com colegas e clientes, esses questionamentos e configurações do que significa viver a verdadeira inovação.

Bora juntes agora fazer uma espécie de descompressão e expansão gentil do conceito e da prática de inovação?

O rosto de Evelyn, personagem do filme Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo, ocupa a maior parte central da imagem. Ela olha fixamente na direção da câmera. Tem uma ferida aberta vertical da testa à bochecha esquerda. O movimento de sua mão direita indica que ela acabou de colar no meio de sua testa um olhinho redondo de plástico, com fundo branco e pupila preta.
Evelyn, personagem do filme Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo, em seu momento de verdadeira inovação. Se não sabe do que to falando, corre para assistir o filme, vencedor do Oscar 2023, e uma das obras de audiovisual mais verdadeiramente inovadoras dos últimos tempos. Imagem por A24.

Pelas minhas investigações até o momento, cheguei nessa humilde lista do que inovação não é, que convido você a acrescentar e a conversar com suas pessoas:

Não é algo incomum ou extraordinário, inédito.

Nem mesmo ser algo genial, ser feito por uma pessoa que se acha ou é apontada pelos demais como alguém melhor ou mais evoluída que us demais.

Não são altas tecnologias, muito menos se elas estiverem a serviço somente de uma parcela da população. Inclusive, se elas não estão disponíveis para todo mundo ter acesso se precisar ou quiser, o processo de inovação não terminou.

Não é mérito do sistema econômico atual, nem um jeito de ultrapassar a concorrência, muito menos fruto de disciplina e hierarquia. E não acontece somente em grupos de poder.

Não é ter uma baita ideia que é reconhecida e celebrada por nossos pares. Ou sobre ganhar fama, prêmios e dinheiro.

Não é fazendo sozinhe e não é fazendo só com outres. Não é fazendo só pra si, e não é fazendo só pelus outres.

Não é limitada pelas circunstâncias ou pela falta de recursos. Não é acontecer só se temos mais, e não é não acontecer de jeito nenhum se temos menos. Inclusive é bom repensar sobre porque focamos tanto no ter para fazer.

Não é sobre evitar ou rejeitar o sofrimento da vida. Senão vamos viver o tempo todo em estado de vigília esperando qual o próximo sofrimento vai nos atingir, e enxergar ameaça em tudo, e seguir nossos dias em estado de sobrevivência.

Não é sobre aceitar ou se resignar com o sofrimento da vida, senão vamos viver o tempo todo em estado de passividade desconectades de qualquer coisa benéfica que aconteça a gente, e somente enxergar desgraça em tudo e seguir nossos dias em estado de sobrevivência.

O mais importante de tudo: inovar não é exclusivo do ser humano, é um mecanismo da natureza.

Desenho papel canson com pastel oleoso e seco. Figuras abstratas que lembram uma paisagem com um sol alaranjado no canto superior esquerdo, cinco nuvens azuladas empilhadas que crescem progressivamente de tamanho, no canto superior direito. Um pássaro marrom, vermelho, amarelo ao centro, uma pedra preta ogivada no canto inferior esquerdo, uma vegetação verde arredondada no canto inferior direito.
Este desenho foi uma baita inovação para mim. Nunca havia usado os materiais nem feito os traços e manchas dessa forma. Até a motivação para criá-lo foi novidade para mim. Imagem por Mel Setubal.

E agora, o que tem feito mais sentido como verdadeira inovação?

Em sala de aula, tenho uma chance maior de aprofundar esse conceito, inclusive para explorarmos juntes como comunidade o percurso entre as etapas entre o criar e o inovar.

Mas para não deixar você chupando dedo, trago aqui alguns pontos importantes para ampliarmos o conceito, e ter pontos de partida para que cada pessoa possa configurar o que vai ao encontro de seus valores e suas aspirações de vida. A verdadeira inovação nos convida a:

• enxergar para além das nossas carreiras e trabalhos, ou do jeitão que as coisas são/serão feitas numa organização, até mesmo das nossas próprias vontades e nossa própria vida!

• evitar exploração e violência, e questionar a atual forma de inovar que aceita a desigualdade e a morte deliberada de pessoas e culturas, a destruição ambiental, e a desinformação como partes inevitáveis do processo.

• lidar com o fato de que certamente será impedida e/ou limitada pelo sistema vigente de muitas maneiras e em todas as partes do processo, inclusive depois de implementada e até aceita por certos grupos.

• realizar uma colaboração comunitária, respeitosa das múltiplas maneiras de funcionar de todas as pessoas envolvidas, que sustenta que somos parte de um sistema natural que funciona melhor que qualquer invenção ou controle humano.

• considerar e incentivar múltiplas possibilidades coexistindo, e sustentar paradoxos.

A verdadeira inovação convive com o fato de que precisamos seguir firmes na intenção do benefício para o máximo de seres possível e saber que só nossa intenção/imaginação não basta. Nosso ego limita nossa capacidade de extensão dos benefícios para os demais seres, então só temos a escolha de nos manter referenciados em nossos valores e de fazer o esforço contínuo de inovarmos a nós mesmes.

Há também que identificar e reconhecer o efeito de ondas que nossa criação provoca, e lembrar que não temos controle sobre as consequências das nossas inovações, nem nas outras pessoas nem em si mesme.

A verdadeira inovação considera o impacto em todas as etapas do processo criativo em perpetuidade, ao mesmo tempo que se desapega de tentar ter o poder de controlar como suas ondas vão reverberar no mundo.

No final das contas, a verdadeira inovação é aquela em que nos damos conta que não há criação mais importante a ser realizada na vida do que a si mesme e o que reverbera a partir de nossas ações e não-ações.

Mas diferente do que se prega na cultura do automelhoramento e da autopromoção, inovar a si mesme é também se despir das exigências de uma sociedade que nos exige consumir para ter valor, que nos exige deixar-nos sermos consumidos em nome do interesse de poucos, que nos exige lealdade apenas a estruturas que nos afasta de conexões conosco mesme, que nos exige apenas lealdade ao próprio ego, que nos afasta de conexões com as demais pessoas e seres e tudo que existe.

Inovar é construir sentido para a própria vida. Inovar é se comprometer em oferecer dignidade de vida para si e se comprometer que todos os seres possam ter uma vida digna também. Inovar não é a respeito de fazer o bem ou fazer o mal, é construir sentido para o fazer e, volta e meia, revisitar esse sentido a partir da reverberação do nosso fazer no nosso entorno.

A verdadeira inovação é viver plenamente a experiência humana.

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