O que é ser bem-sucedido na carreira, afinal de contas?

Breves memórias de uma profissional mal-sucedida que teve a chance de viver a plenitude profissional em 2022.

Melissa Setubal
consciência criativa

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Este é um ensaio pessoal, com algumas lembranças processadas a partir da revisão da minha carreira e da minha vida em 2022. Eu chego em alguns pontos úteis para responder à pergunta do título a você (talvez, é apenas uma intenção). Na maior parte, é um exercício de reflexão pessoal que eu me convidei a fazer a partir das minha experiências nada convencionais com trabalho e carreira.

E a história segue assim…

Arte em lego, com peças multicoloridas e multiformas, contra um fundo felpudo em tons de roxo.
arte e imagem: Mel Setubal

2022 começou como as cenas iniciais de praia em White Lotus, depois virou um episódio de A Caverna do Dragão, e pra terminar como The Good Place. Traduzindo para quem não tem as referências de cultura pop ou para quem quer entender o porquê das referências:

White Lotus porque literalmente eu estava em praias paradisíacas. Depois de passar algumas semanas junto da minha família, o que não acontecia desde 2019 por motivos de vírus que decidiu fazer uma viagem de volta ao mundo, eu fui uma daquelas pessoas felizes na praia junto de quem ama, totalmente alheias do resto do mundo, que tem nas primeiras cenas das duas temporadas da série. Só que tem a primeira cena com uma pessoa morta. Se a minha série pessoal tivesse me mostrado a cena do caixão ou boiando no mar, eu jamais especularia que seria eu a pessoa morta.

Metaforicamente, fui eu quem morri.

Mudou o canal e fui parar na Caverna do Dragão, esse desenho antológico para as crianças dos anos 90 em que os adolescentes são arrancados de um parque de diversões para uma outra dimensão em que tem que enfrentar muitos perigos, tentando sempre em vão voltar à sua realidade em que são meros jovens querendo se divertir. Meu episódio em 2022 teve direito a muitas cenas com o Vingador.

No caso, era meu próprio lado sombra.

Entrei em depressão profunda por muitos meses. Eu que, durante as férias do começo do ano, estava cheia de ideias e vontades para retomar meus trabalhos e minha carreira, que esteve em suspensão boa parte de 2021 porque, em março daquele ano, eu já mostrava sinais de deterioração da minha saúde mental. E agora de novo, na mesma época do ano. Mestre dos Magos sempre trazendo enigmas e desaparecendo quando mais precisamos dele…

Mas eu tinha compromissos de trabalho no segundo semestre, e não era de um projeto qualquer, é justamente de uma oportunidade que nos anos da pandemia me ofereceu referência e luz, que é dar aula no curso de pós-gradução em Criatividade & Ambiente Complexo, na ESPM-SP. O que aconteceu online nos primeiros anos do curso, devido à situação de calamidade mundial, mas que dessa vez teria que passar ser presencial. Como isso seria possível?

Eu não tinha ideia, eu estava no “The Bad Place”.

Referência à série The Good Place com spoilers, porque série já terminou faz tempo, e todes meus estudantes e mentorades precisam assistir à série toda como dever de casa. O “The Bad Place” é literalmente o inferno, na série, que é personalizado para cada personagem principal da série. O meu inferno pessoal era ter o corpo, a mente e o espírito totalmente tomados pela depressão, pelo TEPT, pela síndrome do pânico com agorafobia, numa mistura de questões pessoais emocionais, químicas fisiológicas, e a situação do Brasil e do mundo.

Eu estava em tratamento contínuo com diversos recursos há muito tempo, para essas e outras condições, mas nem isso foi capaz de evitar que eu fosse consumida pelas labaredas desse inferno. Se eu não conseguia nem tomar banho e sair na rua, como ter um trabalho, como ir para outra cidade e dar aula? Se eu não conseguisse trabalhar, como ter acesso aos recursos e tratamentos que desesperadamente preciso por uma questão vida ou morte

as pessoas mais importantes da minha vida são as que conhecem minhas fraquezas, mas vivem elogiando minha força. autoria @soucaos

Para deixar claro, foram anos eu vivendo num limbo de carreira, num não-lugar, numa espécie de entre. Aquele momento no meio do pulo entre um trapézio e outro, de estar dentro da pupa como uma sopa amorfa de células não-lagarta e não-inseto alado, de semente que cai de uma planta e passar a habitar as profundezas do solo. Sair de uma identidade e não ter ainda outra formada para dar referência onde eu termino e onde o resto começa.

Eu já passei por muitos momentos assim na minha vida profissional: boa parte do segundo grau (como se chamava o ensino médio), no término da faculdade de Comunicação Social, e no meu ano sabático. Foram todos assustadores, cheios de dúvidas e inseguranças, de ter muitas direções e nenhuma. Eles não duraram tanto tempo assim e todas foram vividas no auge da juventude, quando eu tinha muita energia e estabilidade financeira.

Esse último não. Esse período foram cerca 5 anos pra mais… Justamente naquela etapa da vida em que supostamente eu já teria que ter certeza do caminho da minha carreira, ter um trabalho fixo estabelecido, ter várias previdências privadas e investimentos financeiros garantidos junto com fonte de dinheiro digna fruto dos meus méritos dentro do capitalismo. Muitas motivos levaram a essa situação:

• insatisfações com o mercado de trabalho e com a forma de empreender no Brasil e nas redes sociais. 😤

Cinco anos atrás, eu que tinha um perfil de inovadora e pioneira na área em que atuava, comecei a sentir o impacto de ser alguém desbravando caminhos. Da quantidade enorme de trabalho e de suporte necessário para seguir sustentando um modelo de negócio e um tipo de narrativa cada vez mais necessária de um ritmo saudável. Mas cada dia mais mercantilizada por um viés capitalista no Marketing Digital e do EUpreendedorismo. Especialistas diziam que eu estava fazendo tudo certo, exceto que isso não gerava os resultados desejados em dinheiro e em oportunidades de trabalho.

Eu não tinha estrutura de negócio nem de saúde mental para lidar com as mudanças dos algoritmos, que foram encolhendo a passos largos a visibilidade de quem, como eu, cresceu e ganhou espaço no orgânico, em que conteúdo de qualidade de presença autêntica reinavam antes, para uma um modelo em que curadoria milimetricamente editada e investimento em posts pagos passaram a ser a regra.

Eu quem tinha saído no universo corporativo justamente por não compactuar com certos valores da exploração de seres e recursos, me vi tentando me dobrar a certas práticas que não alinhavam com minha visão do mundo, e em pouco tempo deu tela azul no meu sistema emocional e espiritual.

• burn-out. 🫥

Agora essa palavrinha finalmente está na boca do povo e infelizmente sentida na pele por uma quantidade enorme de pessoas. Esse estado mental é minha velha conhecida desde que tinha uns 10 anos de idade, mas só fui aprender seu nome e sobre suas condições aos 30. Aos 40, aprendi que ela também tem relação com certas condições do meu neurodesenvolvimento.

Eu pensei que ser empreendedora/freelancer/PJ/trabalhadora informal me libertaria de tais transtornos. Por um lado sim, pois me permite fazer muitas adaptações extremamente necessárias para eu navegar o mundo do trabalho em condições mais dignas para administração do meu tempo e das minhas necessidades.

Por outro lado, a falta de suporte governamental e social me deixou em uma condição extremamente vulnerável de saúde e financeira. Incluindo o fato de que comumente é colocada toda a responsabilidade, culpa e peso em cima dus indivídues de entrar e não conseguir sair do estado de burnout / transtorno de estresse pós-traumático (TSPT). Isso mesmo quando são devidamente diagnosticados e tratados (imagine de quem nem é ou são dadas as condições para tal).

Mesmo eu, em tratamento em quase todos os momentos, era cobrada sistematicamente por não voltar a ser útil para a sociedade em forma de trabalho formal de maneira consistente (para quem, ou para o quê, podemos no perguntar), para não ser peso nem pro Governo, nem pro sistema, nem pra ninguém.

• outras áreas da vida pediram foco. 🤓

Além da saúde mental, também compreendi os sinais que a vida foi me dando. Dos 10 até mais ou menos uns 35 anos de idade, a construção e nutrição da minha carreira foram minha prioridade.

Sair de casa, mudar de cidade e de escolas para estudar em lugares que me dessem maiores condições de passar no vestibular em uma boa universidade. Frequentar a tal Universidade Federal bem cotada, fazer estágios e participar de organizações que me dessem maiores condições de uma colocação numa boa empresa.

Ser selecionada num processo seletivo de trainee numa das maiores empresas locais, que depois se tornou a maior empresa mundial em seu setor, fazer três pós-graduações e inúmeros cursos, participar como integrante ou líder de projetos de grandes proporções, que me dessem maiores condições de uma colocação ainda mais proeminente e bem paga no mercado de trabalho.

Exausta, com diversos transtornos mentais e físicos diagnosticados, com a alma em frangalhos, pegar todos os recursos financeiros colecionados no período para me tratar e investir numa nova carreira. Usar tudo sem conseguir gerar um negócio sustentável e me perceber falida em muitos aspectos.

Quando fui fazer uma auto-avaliação, me dar conta que eu podia estar no meu pior momento de carreira, trabalho e dinheiro, mas muito bem sucedida em outras áreas da minha vida, que eu fui ousando, ao longo da minha década de 30 anos de idade, a colocar mais em foco e como prioridade.

Fazer essa liberação de ter que ser útil para o sistema capitalista o tempo todo é um esforço enorme. Porque não diz respeito a mudar de trabalho, a mudar de carreira, a mudar de lugar geográfico, a mudar de mentalidade, exatamente. Diz respeito aos tipos de perguntas que fazemos para gente mesme quando estamos em crise ou num momento de vazio existencial, que para muites de nós, começa pelo trabalho.

Ser útil para a sociedade, para mim, é parte fundamental da minha saúde mental e do que traz sentido para minha vida. Mas para quê, como, onde, quanto, e principalmente para quem e por quê quero contribuir são perguntas cujas respostas precisam ser convites para ampliação de visão de mundo. Até porque vão muito além de carreira e trabalho. Essa limitação que somos influenciades a manter de que nosso valor está atrelado a essa utilidade, e mais que isso, ao juízo de valor elaborado pela sociedade consumista.

Ao olhar com generosidade e compaixão para mim mesma e para as demais áreas da minha vida (grata demais pelas pessoas que me ajudaram e continuam me ajudando a fazer isso), foi espantosa perceber a progressão. A qualidade das minhas relações pessoais, a forma que eu passei a cuidar de mim, as possibilidades que me foram sendo oferecidas, e que fui escolhendo e conseguindo aproveitar, as minhas referências emocionais e espirituais.

Imagem de um por-do-sol, sol alaranjado baixo no horizonte, com nuvens estreitas e esparças em cores de rosa-claro a cinza-médio, com horizonte de muitos prédios e construções da cidade de São Paulo.
imagem: Mel Setubal

A riqueza tanto das minhas experiências de carreira quanto de vida eram maiores do que eu tinha me dado conta. E eu precisei de 5 anos para ter as condições de olhar para a amplitude que minha alma tomou. E então, me dar conta da amplitude que minha alma ainda pode se aventurar em tomar.

A Esther Perel, uma das minhas referências na área da psicoterapia e da inteligência relacional, fala que todo relacionamento precisa lidar com três aspectos dicotômicos principais. Eu uso eles para refletir sobre a minha vida como um todo. Até porque nossa existência sempre depende de outras relações para existir. Toda existência é relacional. Todas as coisas surgem por meio do co-trabalho de muitas causas e condições, segundo a filosofia budista e outrus pensadores ilustres.

• autonomia e interdependência:

Navegar entre ter o senso de individualidade para praticar a liberdade de ser quem é em meio a um coletivo de indivíduos também com o mesmo senso, com a sabedoria de que todos dependem de todos, que todos precisam de suporte e precisam ser suporte.

gerenciamento de conflitos e comunicação:

Navegar entre os méritos das próprias necessidades, interesses e desejos com a sabedoria de que é preciso considerar, respeitar e colaborar com as necessidades, interesses e desejos dos demais, e a consciência de que modo tudo isso fica (ou não) claro para quem está envolvide na situação.

autoconsciência e prestação de contas (sobre as responsabilidades pessoais, no inglês, accountability):

Navegar entre as próprias responsabilidade e as dos demais, com a sabedoria de distinguir em cada situação as devidas responsabilidades de cada ser envolvido. E navegar entre o receber e o oferecer, com a sabedoria de que podem ir e vir de direções diferentes e nem sempre são um caminho de mão-dupla simétrico, e sim um sistema de equanimidade que envolve todas as pessoas e tudo que existe. Saber que você cuida de si, e também cuida dos demais. Que os demais cuidam de você, e também cuidam de si mesmes, cada pessoas nas condições que lhe são possíveis a cada momento.

E o que é ser bem sucedida na carreira? Depois de todas essas reflexões, talvez uma melhor prática seja dividir essa pergunta em duas: Qual minha definição de sucesso? Qual minha definição de carreira?

Bom, é óbvio que cada pessoa tem a sua, e provavelmente isso vai se alterando à medida de cada experiência de vida e de cada revisão de valores e crenças que vamos fazendo de tempos em tempos. Mas o ponto aqui é que vale refletir e questionar se o que nos guia para gerar essas definições é uma motivação que nos é vendida — e que gera muita insatisfação, burnout, transtornos mentais e físicos e até dívidas (financeiras, relacionais, espirituais…), — ou se o que nos guia para sentar com essas perguntas é a curiosidade de experimentar possibilidades, de se dedicar a algumas delas com interesse em se conhecer e com intenção de beneficiar mais do que só a si mesme.

Assim, me defini como uma profissional mal-sucedida no começo deste ensaio porque, definitivamente hoje em dia, atendo a poucos requisitos dos moldes mais convencionais de sucesso e carreira, que são comuns de se ver nas revistas e “bíblias” de negócios, RH, empreendedorismo. Mas tive a benção de poder viver a plenitude do sucesso na carreira no segundo semestre do último ano, porque tive a sorte, possuo privilégios e fiz o esforço para usar todas as condições e circunstâncias presentes para

experimentar possibilidades, com autonomia da chefia para oferecer o que eu tenho de experiência da maneira que eu desejava, e com as acomodações e recursos que atendiam às minhas necessidades e das pessoas envolvidas;

dedicar-me a essas possibilidades com interesse de me conhecer , usando o que eu estava oferecendo para os participantes para mim mesma, usando cada interação, cada imprevisto, cada tensão, cada risada, cada encontro como uma maneira de me enxergar e de expandir meu conhecimento, minha intuição, minha inovação;

beneficiar mais do que só a mim mesma , pois recebi um pagamento digno pelo trabalho que ofereci e mais um voto de confiança em minha capacidade, o que me deu condições de oferecer para as pessoas que estavam envolvidas no meu trabalho a minha plena atenção, minha empatia, meus recursos, meu tempo e minha energia. Com o dinheiro que recebi, pude ampliar meus cuidados com minha saúde mental e me oferecer mais coisas que eu precisava, o que me fazia me sentir mais nutrida emocionalmente e com maior espaço interno para estar presente para as pessoas e as situações. As pessoas que participaram das aulas, mentoras e leituras intuitivas comigo com frequência me descreveram o que elas receberam que as beneficiaram, e como isso se expandia em suas redes.

Na minha última turma do ano, da aula de Inteligência Relacional & Consciência Criativa como professora de umas das mais renomadas instituições de ensino superior do Brasil, me dei conta que realizei uma aspiração/uma visualização que ousei ter lá nos anos 90 e achava perdida em meio a tantas alterações de rota: estar dentro da faculdade que eu sonhava estudar quando era uma ingênua estudante de Comunicação Social, exatamente na função que eu sonhava ter quando estivesse no auge da minha carreira nessa área.

Eu corrigi os trabalhos finais em lágrimas. Ao mesmo tempo que surpreendida em como us estudantes pegaram o que foi oferecido, usaram e colheram como resultados, e apenas UM MÊS!, eu também fui tomada por uma sensação de plenitude. Tudo o que eu sabia que era possível numa jornada comunitária foi materializado, e foi além. Meu senso de conexão com as pessoas, comigo mesma, com a vida atingiu níveis nunca antes alcançados. Eu estava nas cenas finais de The Good Place!

Agora em 2023, ainda em tratamento e recuperação, é celebrar e se nutrir dessa experiência única, ter a consciência que essa experiência passou e que preciso honrar o espaço existente para que outras experiências se manifestem, acolhendo as emoções e as possibilidades que elas oferecerem, e criar outras experiências com essa inovação incorporada de agora em diante. Elas contribuindo diretamente para minha carreira de sucesso, ou não.

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